
O setor elétrico tem passado por uma verdadeira tempestade perfeita. Após os desafios que têm atormentado a distribuição de energia elétrica desde 2012, a geração de energia hidrelétrica passou a viver uma crise em 2014 que se aprofunda em 2015.
Segundo o Ministro de Minas e Energia,
Eduardo Braga, após as soluções desenvolvidas para atenuar minimamente
os problemas da distribuição de energia, a geração será o elo da cadeia
produtiva do setor elétrico que merecerá atenção do governo. Conforme
descrito abaixo, a atenção e o senso de urgência governamental são
essenciais para devolver a sustentabilidade econômico-financeira à
geração hidrelétrica no Brasil.
As usinas hidrelétricas responderam, em
2014, por 73% da eletricidade gerada no país, fonte que é a líder
absoluta: a termeletricidade respondeu por 26% e as eólicas por 1%. O
parque hidrelétrico atualmente instalado no país é composto por mais de
1.110 usinas de vários portes que somam mais de 92.000 MW de potência
instalada.
Pelas regras do setor, o “despacho”
(ordem para operação) hidrelétrico é feito pelo ONS (Operador Nacional
do Sistema Elétrico), que determina qual usina deve operar, em qual
momento, e com qual intensidade. A lógica desta operação é baseada na
minimização do custo total de operação (imediato e futuro) do sistema. O
risco resultante dessa operação centralizada é rateado entre as usinas
hidrelétricas por meio do MRE (Mecanismo de Realocação de Energia), que
pode ser comparado a um “condomínio” coordenado pelo mesmo ONS (o
“síndico” do condomínio). Em outras palavras, as usinas não têm
autonomia alguma sobre sua própria operação.
A comercialização da energia das usinas
hidrelétricas é realizada por meio de contratos de venda de energia.
Cada usina possui um limite comercial de venda, denominado Garantia
Física, a qual é calculada pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE) e
homologada pelo Ministério de Minas e Energia (MME).
A Garantia Física é calculada
considerando um critério de planejamento da operação, onde são
representadas as diversas fontes de geração existentes e em construção, o
sistema de transmissão, a evolução do consumo e a incerteza
hidrológica. De forma simplificada, a Garantia Física pode ser entendida
como a capacidade média de geração das usinas hidrelétricas
considerando critérios de risco, sendo que o limite máximo de risco de
déficit admitido pelo Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) é
de 5%.
O gerador decide o percentual de sua
Garantia Física que será vendido em contratos, e a energia remanescente
produzida pela usina é liquidada no Mercado de Curto Prazo Título
Geração hidrelétrica – riscos e responsabilidades Veículo Canal Energia
Data 22 Abril 2015 Autores Claudio J. D. Sales, Eduardo Müller Monteiro e
Richard Lee Hochstetler ao Preço de Liquidação de Diferenças (PLD).
Ainda que algumas hidrelétricas planejassem deixar uma parte do seu
lastro de venda para suprir momentos como este – em que a geração está
abaixo da sua Garantia Física -, registre-se que o MME, a Aneel e o
BNDES exigiram, em alguns casos, a contratação de 100% da Garantia
Física da usina hidrelétrica para a habilitação técnica nos leilões e
para a concessão do financiamento.
A partir de 2014, o volume total de
energia gerada por todas as hidrelétricas passou a ser muito inferior à
Garantia Física das usinas hidrelétricas. A diferença entre a Garantia
Física das usinas hidrelétricas e o volume de energia efetivamente
gerada – chamada no jargão setorial de GSF, um acrônimo em inglês para
“Generation Scaling Factor” – passou a se tornar um pesadelo bilionário
para os geradores hidrelétricos desde 2014 devido a várias causas que
podem ser divididas em duas categorias.
A primeira categoria se refere aos
riscos hidrológicos e comerciais que fazem parte do negócio dos
geradores e devem ser assumidos pelos mesmos: se chover menos ou se a
estratégia de contratação de energia dos geradores for errada, os mesmos
devem colher as recompensas ou prejuízos derivados dessa situação,
segundo regras que já eram conhecidas desde o começo.
Mas há uma segunda categoria de causas
que o governo, até pouco tempo atrás, negava-se a reconhecer: uma parte
do problema advém da forma como o sistema tem sido expandido e operado. A
geração hidrelétrica foi reduzida devido a Políticas de Expansão e
Operação impostas pelo próprio governo e que não poderiam ser
antecipadas, muito menos incluídas nos modelos e estratégias dos
geradores. Quando isso ocorre, pode-se dizer que os geradores são
expostos de forma involuntária, impondo-lhes riscos para os quais não
havia ferramentas de gestão disponíveis. Também se incluem nesta segunda
categoria diversos fatores alheios à vontade dos geradores
hidrelétricos, como os atrasos em projetos de geração e transmissão e a
rescisão contratual de relevantes empreendimentos de geração. Ambos
influenciaram negativamente a robustez da matriz elétrica e suas
consequências não podem ser assumidas pelos geradores hidrelétricos.
Pelas regras do setor, o risco dos
geradores hidrelétricos deveria ser limitado por dois fatores. Em
primeiro lugar, a Política de Expansão deveria ser dimensionada de forma
a manter o risco de déficit limitado a 5%. Em segundo lugar, a Política
de Operação é baseada em modelos que pressupõem corte de carga sempre
que o Custo Marginal de Operação (CMO) superar o Custo de Déficit.
Havendo racionamento para promover a redução de carga, a legislação
prevê a redução dos contratos na mesma proporção da redução de consumo.
Ambos os limites foram violados
ultimamente. Segundo a ata do Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico
de fevereiro de 2015, o risco de déficit superou o limite de 5% e foi de
7,3% na região Sudeste/Centro-Oeste. Já o CMO superou o primeiro
patamar do Custo de Déficit (R$ 1.420,34/MWh) em vários momentos de 2014
e 2015. Ou seja, tecnicamente os modelos computacionais oficiais
indicaram que o corte de carga seria mais econômico.
Além da ultrapassagem dos limites das
Políticas de Expansão e Operação, o governo tem tomado medidas que têm o
efeito de ampliar a exposição dos geradores hidrelétricos.
A primeira medida governamental que
aprofunda o problema do GSF é a campanha de racionalização deflagrada
pelo Ministério de Minas e Energia, com recursos do Programa de
Eficiência Energética. Com a redução do consumo derivada da campanha, a
geração hidrelétrica será reduzida (ou “deslocada”, no jargão setorial)
uma vez que o ONS continuará a priorizar o despacho termelétrico para
preservar a água nos reservatórios hidrelétricos. Houve frustação de
expectativas, uma vez que o mecanismo previsto na Lei 10.848/2004 para
redução de carga é o racionamento, situação na qual haveria redução de
contratos na mesma proporção.
A segunda medida é a chamada pública
prevista pela Portaria nº 44/2015 do Ministério de Minas e Energia para
contratação de energia gerada por consumidores – shopping centers,
indústrias, condomínios etc. – pagando R$ 1.420,34/MWh, valor exatamente
igual ao custo de déficit (primeiro patamar) e que deveria implicar o
início do racionamento, com redução proporcional dos contratos, o que
reduziria a exposição dos geradores.
A terceira medida ocorre quando a
geração hidrelétrica é “deslocada” por outras fontes pelo chamado
Despacho Fora da Ordem de Mérito Econômico e pela política de
contratação de Energia de Reserva: embora as usinas hidrelétricas
estejam aptas a operar, o ONS, com o objetivo de manter água nos
reservatórios hidrelétricos, não dá o comando para a geração
hidrelétrica, aprofundando a diferença entre Garantia Física e energia
gerada e aumentando, portanto, a profundidade do GSF.
Medidas como as acima poderiam ser
caracterizadas como um racionamento técnico, ainda que não
explicitamente reconhecido pelo governo.
Os números mostram o tamanho do drama: o
saldo médio do GSF em 2014 foi de 90,7%, o que significa dizer que
houve uma geração 9,3% (100 – 90,7 = 9,3) inferior à Garantia Física. Se
os geradores estivessem 100% contratados, a diferença que precisaria
ser adquirida no Mercado de Curto Prazo ficaria em R$ 26 bilhões. As
projeções para 2015 são de um aprofundamento no GSF, que deve ser de
86,1%, impondo um custo de R$ 24 bilhões para uma contratação de 100% da
Garantia Física.[A explicação para a redução do valor em 2015, apesar
do GSF ser maior, dá-se pela redução do preço-teto no Mercado de Curto
Prazo].
As interações dos geradores
hidrelétricos com o governo e com a Aneel não têm sido animadoras. Além
da resistência em admitir a influência das políticas governamentais nas
causas que têm aumentado o GSF, as hipóteses de correção que têm
aparecido parecem caminhar para soluções individuais e casuísticas,
empresa a empresa. A solução deve ser estrutural, sistêmica e
definitiva.
O Ministério de Minas e Energia e a
Aneel precisam abrir seus olhos e ouvidos para, pelo menos, admitir que o
problema do GSF foi influenciado por fatores extemporâneos aos riscos
hidrológicos e comerciais dos geradores hidrelétricos. Devese buscar,
portanto, uma solução que aloque custos e riscos de forma equilibrada.
Mas o tempo trabalha contra: a cada mês que passa, aumentam as
distorções de alocação de custos e riscos.
Se nada for feito, dois efeitos
negativos podem ser esperados. Em primeiro lugar, os geradores
hidrelétricos serão forçados a adotar estratégias mais conservadoras e
reduzirão drasticamente sua oferta de energia nos leilões de Energia
Existente e no Ambiente de Contratação Livre, o que submeterá os
consumidores aos preços altos do Mercado de Curto Prazo.
Em segundo lugar, caminharemos para um
cenário de judicialização envolvendo valores bilionários, opção que
deveria ser excluída num momento tão delicado de um país que tem buscado
disseminar globalmente mensagens de credibilidade, previsibilidade e
confiança para a atração de investimentos.
Claudio J. D. Sales, Eduardo Müller Monteiro e Richard Lee Hochstetler são do Instituto Acende Brasil (www.acendebrasil.com.br).
Comentário de Ivo Pugnaloni:
Mais um artigo focando os equívocos do planejamento da expansão da geração no Brasil.
E que demonstra, mesmo
involuntariamente, como a nossa atual dependência de termoelétricas
movidas a combustíveis fósseis pode ter sido milimetricamente planejada.
E nunca evitada.
E como essa política apresenta vulnerabilidade a casuísmos e subjetividades.
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